Gargântua

MÉTODO PARA POETAS

 

Michel Houellebecq é um dos mais polêmicos autores franceses contemporâneos. Poeta, romancista e ensaísta, escreveu o texto Continuar vivo [Rester vivant], em três partes, em 1991, antes de lançar seus romances mais conhecidos: Extensão do domínio da luta; Partículas elementares e Plataforma.

 

Abaixo, com exclusividade para a Ruído Branco, traduzo a primeira das partes de Continuar vivo.

  

Continuar vivo

Método

 

Em primeiro lugar, o sofrimento

 

O mundo é um sofrimento expandido. No início, havia um núcleo de sofrimento. Toda existência é uma expansão, e um esmagamento. Todas as coisas sofrem, até elas serem. O nada vibra de dor, até chegar a ser: em um abjeto paroxismo.

Os seres se diversificam e se tornam complexos, sem nada perder de sua natureza original. A partir de um certo nível de consciência, se dá o grito. A poesia deriva disso. A linguagem articulada também.

A primeira tentativa poética consiste em voltar à origem, a saber: ao sofrimento. As modalidades do sofrimento são importantes; elas não são essenciais. Todo sofrimento é bom; todo sofrimento é útil; todo sofrimento carrega seus frutos; todo sofrimento é um universo.

Henri tem um ano. Ele se esparrama no chão, suas fraldas estão sujas; ele berra; Sua mãe vai e vem batendo seus saltos nas lajotas da sala, procurando seu sutiã e sua saia. Ela tem pressa para seu encontro da noite. Essa coisinha coberta de merda, que se agita nas lajotas, a exaspera. Ela também se põe a gritar. Henri berra como ninguém. E ela sai.

Henri tem tudo para começar sua carreira de poeta.

Marc tem dez anos. Seu pai está no hospital morrendo de câncer. Essa espécie de máquina usada, com tubos na garganta e sondas, é seu pai. Apenas o olhar vive; ele exprime o sofrimento e o medo. Marc também sofre. Ele também tem medo. E ao mesmo tempo ele começa a ter vontade que seu pai morra, e a se sentir culpado por isso.

Marc vai ter que trabalhar. Ele desenvolverá em si esse sofrimento tão particular e tão fecundo: a Muito Santa Culpabilidade.

Michel tem quinze anos. Nunca foi beijado por menina alguma. Ele gostaria de dançar com Sophie; mas Sophie dança com Patrice, e com certeza ela gosta. Ele está petrificado; a música o invade até seu mais profundo interior. É uma lenta muito bonita, de uma beleza surreal. Ele não sabia que se podia sofrer tanto. Sua infância, até então, tinha sido feliz.

Michel não esquecerá nunca o contraste entre seu coração petrificado pelo sofrimento e a desestabilizadora beleza da canção. Sua sensibilidade está se formando.

Se o mundo é composto de sofrimento é porque ele é, essencialmente, livre. O sofrimento é a conseqüência necessária do livre jogo das partes do sistema. Você tem que saber disso e dizê-lo.

Não lhe será possível transformar o sofrimento em objetivo. O sofrimento é, e conseqüentemente não saberá se transformar em meta.

Nas feridas que ele nos inflige, a vida alterna entre o brutal e o insidioso. Conheça essas duas formas. Pratique-as. Adquira um conhecimento completo. Distinga o que as separa, e o que as une. Então, muitas contradições serão resolvidas. Sua palavra ganhará em força, e em amplitude.

Tendo em vista as características da época moderna, o amor não pode mais se manifestar muito; mas o ideal do amor não diminuiu. Sendo, como todo ideal, fundamentalmente situado fora do tempo, ele não diminuirá e nem desaparecerá.

Daí uma discordância ideal-real particularmente gritante, fonte de sofrimentos particularmente ricos.

Os anos da adolescência são importantes. Uma vez que você tenha desenvolvido uma concepção de amor suficientemente ideal, suficientemente nobre e perfeita, você está acabado. A partir daí, nada mais lhe bastará.

Se você não freqüenta as mulheres (por timidez, feiúra ou qualquer outra razão), leia as revistas femininas. Você sentirá sofrimentos quase equivalentes.

Vá até o fundo do poço da ausência de amor. Cultive o ódio de si. Ódio de si, desprezo dos outros. Ódio dos outros, desprezo de si. Misture bem. Faça a síntese. No tumulto da vida: ser sempre derrotado. O universo, como uma discoteca. Acumule frustrações em grande quantidade. Aprender a ser poeta é desaprender a viver.

Ame seu passado, ou deteste-o; mas que ele continue presente a seus olhos. Você tem que adquirir um conhecimento completo de si próprio. Assim, pouco a pouco, seu eu profundo se descolará e se escamoteará sob o sol; e seu corpo ficará no lugar; inchado, empolado, irritado; maduro para novos sofrimentos.

A vida é uma série de testes de destruição. Passar nos primeiros testes, fracassar nos últimos. Errar a vida, mas errar por pouco. E sofrer, sempre sofrer. Você tem que aprender a sentir a dor por todos os seus poros. Cada fragmento do universo lhe deve ser um ferimento pessoal. Contudo, você tem que continuar vivo – pelo menos por um certo tempo.

A timidez não deve ser desdenhada. Há quem a considere como a única fonte de riqueza interior; não estão errados. Efetivamente, é nesse momento de defasagem entre a vontade e o ato que os fenômenos mentais interessantes començam a se manifestar. O homem no qual essa defasagem está ausente situa-se próximo do animal. A timidez é um excelente ponto de partida para um poeta.

Desenvolva em você um profundo ressentimento em relação à vida. Esse ressentimento é necessário a toda verdadeira criação artística.

Às vezes, é verdade, a vida lhe aparecerá simplesmente como uma experiência incongruente. Mas o ressentimento deverá sempre permanecer por perto, embaixo da manga – mesmo se você decidir não o expressar.

E volte sempre à origem, que é o sofrimento.

Quando você suscitar nos outros uma mistura de piedade assustadora e de menosprezo, saberá que você está no caminho certo. Você poderá começar a escrever.

 


Nereu Afonso da Silva

Nereu Afonso da Silva nasceu em São Paulo, em 1970. É autor de Correio Litorâneo, Editora Record, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, na categoria contos. Formado em filosofia pela USP, enveredou para o teatro. Foi um dos Doutores da Alegria (palhaços em hospitais). Hoje vive na França, onde escreve, atua, leciona e dirige para o teatro. Mantém o blog http://bombyx.wordpress.com.

E-mail: nereu.afonsodasilva@neuf.fr