Êxtimo

A LETRA QUE FLAMBA E A CHAMA QUE QUEIMA

 

Gostaria de convidar meu leitor a uma leitura recompensadora. Trata-se de um pequeno poema de Jamesson Buarque:

 

Sobre tudo que eu queira escrever nada haverá senão linguagem

O ser chega privado de carne e água e osso

Quando em sua matéria a palavra lhe fogo

Linguagem não é mais significado quando fala

E a linguagem somente sabe disto: falar

Sobre tudo o que seja possibilidade e não, embora não diga nada

 

Para dizer fogo é preciso tirar a chama da palavra

É preciso abdicar das labaredas para que soem as sílabas

A matéria que resta canta em gestos de fone

E se há escritura, o que flamba é letra, jamais chama

Por isso é igual para dizer água: restar na secura

Da palavra de ouvido e/ou de olhos adentro e apenas

 

O que digo em escritura ou fala é um gesto de nostalgia

Apenas uma existência amputada ou fóssil de olhos nas costas

Uma corrupção da comunhão que havia entre tudo e nada

 

Esse poema é sem título, como me explicou Jamesson: “meus poemas menores são indexados pelo primeiro verso ou pela metade do primeiro verso. Meus poemas longos sempre têm título. Raramente um menor tem”. Como se vê, o poeta retoma uma questão filosófica que constitui o traço distintivo e inovador da modernidade, traço abordado por todos os filósofos, cada um a seu modo, desde Descarte: a questão da autonomia da linguagem em relação ao mundo que ela pretende dizer e vice-versa. Formulemos assim: o reino da linguagem impõe uma perda de algo que é da ordem do real.

Seria imperdoável, contudo, abordar este poema sem mencionar algo a respeito de sua dimensão formal, algo que nos é dado a partir da experiência de sua leitura. Um dos traços que o poeta Jamesson domina com absoluta mestria em seu fazer se encontra na dimensão sonora, musical, das frases que ele inventa. Leiam em voz alta qualquer coisa que ele escreveu, vocês terão experimentado, então, uma espécie de coerência sonora, s vezes inusitada, entre os fonemas. As palavras simplesmente fluem, cada som pedindo o próximo que o sucede. Se quiserem, podem esquecer o significado das palavras, ainda assim não faltará o que apreciar. O que não significa, como é o caso deste poema, que a dimensão da significação não seja relevante.

E não se trata apenas da utilização dos recursos clássicos de articulação poética, por exemplo, o uso da repetição fonemática, que pode ser encontrado nas últimas palavras dos terceiros, quarto e quinto versos, respectivamente, “fogo”, “fala” e “falar”. Quando usado, esse tipo de repetição se dá de modo revelador, como no segundo verso da segunda estrofe, “para que soem as sílabas”. É um sorriso de satisfação que nos rouba a expressão da face quando ouvimos “para que soem as sílabas”. De repente, nos dizemos: sim, sim, as sílabas não fazem outra coisa senão soar. Contudo, mesmo quando não há repetição fonemática a coerência sonora faz o texto fluir, por ex.:

“Sobre tudo que eu queira escrever nada haverá senão linguagem”. À primeira vista, essa frase faz tropeço, mas, corrigindo o passo da leitura, vê-se que tudo flui, cada palavra sendo bem vinda na frase.

Por outro lado, quando o significado é levado em conta na experiência da leitura, pode-se verificar uma espécie de encontro bem sucedido da significação com o significante sonoro. Remetam-se a “Para dizer fogo é preciso tirar a chama da palavra”. Toda questão filosófica de que falávamos está condensada nessa frase que soa magnificamente aos ouvidos. “Tirar a chama da palavra” é uma formulação absolutamente inusitada e instigante. A palavra tem chama? Não, não tem, foi-lhe tirada quando se disse “fogo”, a chama foi morta, permaneceu mais além ou foi perdida. Mas notem que também seria possível dizer Sim, sim a palavra tem sua chama, mas que já não é aquela chama que lhe foi tirada, mas sim a “letra que flamba”. Saímos do “queimar da chama”e entramos no “flambarda letra”. “A palavra mata a coisa”, como disse Lacan. Pode também matar a sede, mas apenas a sede de palavra, não a de água, essa podemos bebê-la pelo resto da eternidade que “restaremos na secura”.

Assim, ao nos apresentar o que constitui a incidência da linguagem sobre nós, se verifica a perda de algo, da chama, da água e de tudo que é da ordem das necessidades e das substâncias que constituem as coisas do mundo. Esse poema pode ser o meio que nos remeta para um mais além, que se apresenta primeiramente como o mais além do que é da ordem da necessidade, da água que se bebe. Trata-se do campo da demanda que a linguagem inaugura. Quando um ser humano formula uma frase, quando formula um pedido, água que seja, é a demanda de amor que se esconde e se realiza nesse pedido. “Toda demanda é demanda de amor”, formula Lacan. Eis o reino do que flamba na letra, do que a esquenta, e pode até queimar. Quando um sujeito não foi desejado, esperado e amado por seus pais, ele foi, então, carbonizado no nível da demanda. Torna-se, no mais das vezes, suicida.

No entanto, se seguimos a via da psicanálise, devemos nos referir a um outro mais além: há algo em nós que não é a letra que flamba, algo que permanece para além do que é dito, e que representa o que foi perdido, a perda, em sua dimensão mais essencial: a pulsão. A pulsão é uma chama que queima e não flamba. Há, pois, uma palavra que queima que, mesmo na sua distância, toca o real.

Quero terminar com um exemplo que Lacan colheu no livro dos sonhos de Freud, um que é realmente estarrecedor, ainda mais pelo fato de que ele passa a ser sonhado repetitivamente. Este sonho decorre da seguinte situação real vivida por um pai. Este vem a perder seu filho ainda criança e o que temos da história real deste pai é que ele está sozinho, sem a presença da mãe ou de qualquer outro parente, velando o corpo do filho. Ele decide contratar um velho para velá-lo enquanto descansaria no quarto ao lado. O pai adormece neste quarto, mas o velho, incompetente, também adormece ao lado do caixão. Ocorre então um fato muito desagradável, para dizer o mínimo: uma vela cai sobre o corpo do menino e começa a queimá-lo. A luz das chamas invade o quarto do pai que acorda em sobressalto. Poderia se pensar que foi essa luz vinda da realidade exterior que o acordou, mas não foi isso e sim algo que se passou no sonho que ele sonhava no exato momento deste acontecido. Eis o sonho. O pai sonhou que seu filho, em chamas, se aproximava de seu leito de descanso, pegava seu braço, e lhe dizia em tom de sabe-se lá que súplica e reprovação: “Pai, não vês que estou queimando?!”. Tomado de pavor com a figura aterradora do filho em chamas, o pai acorda. Ele havia encontrado no interior do sonho um real insuportável, e era preciso acordar, fugir desse real, para, como diz J.-A. Miller, continuar dormindo. Há no núcleo do inconsciente um real que é mais real que a realidade exterior.

Mas terminemos com Lacan:

“Esta frase (Pai, não vês que estou queimando), ela própria é uma tocha — ela sozinha põe fogo onde cai — e não vemos o que queima, pois a chama nos cega sobre o fato de que o fogo pega no real. [...] “O sonho prosseguido, não é ele, essencialmente, se assim posso dizer, a homenagem realidade faltosa — realidade que não pode mais se dar a não ser repetindo-se infinitamente, num infinitamente jamais atingido despertar? Que encontro pode haver daí por diante com esse ser inerte para sempre — senão aquele que se passa justamente no momento em que a chama, por acidente como por acaso, vem se juntar a ele? [...] O filho morto pegando seu pai pelo braço, visão atroz, designa um mais-além que se faz ouvir no sonho... É no sonho somente que se pode dar esse encontro verdadeiramente único. Só um rito, um ato sempre retido, pode comemorar esse encontro imemorável — pois que ninguém pode dizer o que seja a morte de um filho — senão o pai enquanto pai — isto é, nenhum ser consciente.

 

 


Cristiano Alves Pimenta

Nascido em Goiânia, vivido na velha, ou não tão velha, Vila União, logo começou a ler coisas por conta própria e se deparou com uma epígrafe de autoria de Antonio Gramisci: Todos somos filósofos. Pronto! Primeiro raciocínio propriamente filosófico: Se todos os homens são filósofos (premissa maior), e Cristiano é homem (premissa menor), logo: Cristiano é filósofo. Tornou-se, então, um jovem filósofo, amante da verdade, leitor de K. Marx, Sartre, Hegel, entre outros. Foi salvo da megalomania apenas pela humildade, que o obrigava por prova os produtos dessa ratio pessoal. Tortuosos caminhos o levaram, contudo, da faculdade de filosofia (USP) para a psicanálise Freudo-Lacano-Milleriana. Outro pronto! O amor verdade caiu. Hoje, mais lhe vale uma ilusão útil(Baudelaire) do que mil verdades inúteis.

E-mail: cris.alvespimenta@yahoo.com.br