Contribuições

A Caracterização do Sujeiro Moderno em Ibsem, A partir da peça O Pato Selvagem

 

Por: Paola Nunes de Souza

 

1.Algumas observações sobre Ibsen e sua obra

         Quando paramos para estudar a respeito do dramaturgo Henrik Ibsen e sua obra dramática, não é difícil nos depararmos com opiniões de críticos que afirmam a superioridade do norueguês em relação aos outros dramaturgos do século XIX. É idéia recorrente em muitos críticos de que há presente na construção dramática ibseniana uma composição singular que faz com que tudo na obra do norueguês, as cenas, os diálogos, os incidentes, pareçam naturais como realmente acontece na vida. No entanto, tudo isso é uma ilusão muito bem criada e concebida por Ibsen, visto que tudo está subordinado à construção dramatúrgica.

         Pode-se dizer com confiança que o teatro de Ibsen renovou a arte cênica do século XIX com um novo estilo de falar no palco, que utilizava a linguagem cotidiana das massas, com a representação de fatos que possuíam uma estreita relação com a vida das pessoas e, sobretudo, com o enfrentamento e o desmascaramento dos problemas burgueses.

         Carpeaux (1963), ao tecer comentários a respeito da influência de Ibsen, diz que, por causa da obra dele, novos teatros foram criados, graças à especificidade de uma obra que não poderia ser encenada em qualquer lugar. O fato é que, além de conquistar o teatro mais conservador do mundo, o teatro francês, Ibsen conseguiu criar o teatro moderno na Inglaterra, onde não havia teatro sério há séculos. Como se não bastasse, graças à sua influência, um novo teatro na Alemanha surgiu, inspirando um período mais fecundo da literatura alemã (CARPEAUX, 1963).

         Henrik Ibsen nasceu no dia 20 de março de 1828, em Skien, pequena cidade marítima do Sul da Noruega. Filho de comerciante abastado, Ibsen parecia destinado a um futuro mercantil, bem provinciano. No entanto, não foi um futuro mercantil que o jovem Ibsen encontrou pela frente. Quando estava com sete anos de idade, o pai faliu, e a prosperidade da família converteu-se em pobreza. A família, então, arruinada, mudou-se para o sítio Venstoeb. Ali, Ibsen deu continuidade aos seus estudos até ser obrigado a pará-los para ter que trabalhar, em uma cidade norueguesa chamada Grimstad, como aprendiz em uma farmácia. Nessa cidade, Ibsen escreveu suas primeiras poesias. Foi ali também que passou a estudar para os exames universitários. Não demorou muito e lhe surgiu a primeira peça: Catilina.

         Nascido e criado na Noruega, Ibsen escolheu viver em outros países durante longos períodos. Ao todo, passou um total de vinte e sete anos na Itália e na Alemanha. No entanto, nunca se afastou dos seus antecedentes, recorrendo correntemente à Noruega como cenário das suas peças.

          Ibsen teve em sua época uma popularidade muito grande e, nesse sentido, é importante ressaltar que a celebridade do dramaturgo, na Europa, se deu graças à mensagem social das suas peças, redutível, em última análise, à idéia do dever do indivíduo para si próprio, da tarefa de auto-realização, da imposição de sua própria natureza contra as convenções da sociedade burguesa, mesquinhas, estúpidas e anacrônicas (HAUSER, 2005). Como uma espécie de registro vivo de sua época, os dramas de Ibsen analisam e criticam a sociedade ao retratar os conflitos existenciais e psicológicos das personagens, que não são mais do que representações das pessoas de seu tempo, se assim podemos dizer. Por isso, para estudiosos como Arnold Hauser, a figura central na história do drama moderno é Ibsen. Tal fato se dá não apenas porque ele é o maior talento do século, mas também porque é ele quem dá expressão dramática mais intensa aos problemas morais da sua época. Essa característica, aliás, é o que diferencia Ibsen de outros dramaturgos do seu tempo e o que caracteriza como um autor teatral singular no século XIX.

No ano de 1899, Ibsen escreveu sua última peça Quando despertamos de entre os mortos. Nessa época suas obras já eram populares e o dramaturgo bastante conhecido em toda Europa. Ibsen esperava ainda escrever mais, no entanto, vítima de uma apoplexia, em 1902, Ibsen acabou ficando completamente paralisado e, em 1906, no dia 23 de maio, o dramaturgo faleceu.

         Em sua História da Literatura Ocidental, Carpeaux afirma que Ibsen não admitiu fases no que tange à sua obra. Ao invés disso, ele exigia que se fizesse uma leitura cronológica de seus trabalhos, como um conjunto coerente. Assim, no que diz respeito à suas peças teatrais, como resultado de longos e produtivos anos de trabalhos, temos:

 

  • Catilina                                                         1850
  • O Tumulus                                                    1850
  • Olaf Liljekraus                                              1856
  • A festa em Solhang                                       1856
  • Mme. Inger em Ostraat                                 1857
  • Os guerreiros em Helgoland                         1858
  • A Comédia do Amor                                     1862
  • Os pretendentes à Coroa                               1864
  • Brand                                                            1866
  • Peer Gynt                                                      1867
  • A União dos Jovens                                      1869
  • Imperador e Galileu                                      1873
  • Os sustentáculos da Sociedade                     1877
  • Casa de Boneca                                            1879
  • Os Espectros                                                 1881
  • O Inimigo do Povo                                       1882
  • O Pato Selvagem                                          1884
  • Rosmersholm                                                1886
  • A Dama do Mar                                            1888
  • Hedda Gabler                                                1890
  • Solness, o Construtor                                    1892
  • O Pequeno Eyolf                                           1894
  • Quando despertamos de entre os mortos      1899

        

         A obra de Henrik Ibsen, como se vê, é vasta, e o interessante no que diz respeito a ela é que, ao focar os problemas referentes à sociedade burguesa, as peças acabavam por trazer à tona uma característica bastante singular que se faz presente em toda a sua obra: a revelação do sujeito moderno no teatro. Ao elaborar suas peças, Ibsen trouxe à superfície dramática um sujeito que acabava de se descobrir dotado de contradições e de cisões. Em suma, emerge aí um sujeito que se dá conta de que a unidade é uma falácia e que seu ser é acima de tudo um ser ambíguo.

         Segundo Tereza Menezes, autora do livro Ibsen e o novo sujeito da modernidade, foi no século XIX que surgiu um novo tipo de sujeito no mundo, algo que ela denomina como sujeito da modernidade. Para a autora, este novo sujeito traz de volta algo que havia sido perdido desde a efervescência do Renascimento, que é a percepção do mundo interior. O fato é que essa nova percepção de si mesmo acabava por descortinar um homem cindido, multifacetado e dividido, que acabava por ter, consciente ou inconscientemente, ciência de sua dimensão interior. São sujeitos que, ao adquirirem consciência de que não são plenos e unos, percebem que são fragmentados e que estão em constante devir.

         O interessante, nesse sentido, é que a dramaturgia de Ibsen mostra exatamente o momento de percepção dessa cisão interior do sujeito entre o que ele quer sentir e o que ele efetivamente sente. Ela mostra a evolução do querer humano e das tentativas de uma vontade consciente e determinada que impele o protagonista a cumprir o seu destino mesmo que o resultado de sua busca no fim não seja positivo.

         A obra de Ibsen veio ao encontro do novo sujeito da virada do século – um sujeito com uma nova possibilidade de se auto-refletir, de pensar sobre si próprio e de analisar suas falhas e fraquezas, ainda que não consiga revertê-las. Assim, muitos dos personagens ibsenianos, ao mostrarem essa faceta do novo sujeito pensante, questionaram radicalmente os valores da burguesia do século XIX, fazendo da obra do dramaturgo norueguês um testemunho das inquietudes, das dúvidas e dos problemas de uma época. Dessa forma, para Ibsen, naquele momento, não se tratava mais de levar ao público o extravasamento de “sentimentos genuínos”, mas sim de chamá-lo a discutir sua intimidade e a romper a barreira do falso comedimento, questionando os valores há muito tempo internalizados, ainda que não assumidos íntima e conscientemente (MENEZES, 2006).

         O momento em que acontece a obra de Ibsen é extremamente importante, pois é o momento em que, no âmbito da dramaturgia, se diferencia o homem público do privado, o mundo interior do exterior, o conhecido do desconhecido, o eu do outro. Na obra do dramaturgo, esta diferenciação significa a possibilidade e o dever do indivíduo tornar-se ele mesmo, de descobrir e realizar sozinho aquilo que ele quer, muito embora isso às vezes surja na obra de Ibsen como algo não tão isolado e individualista. Pois, muitas vezes, se faz necessário o outro para que se descubra e se consiga o desvendamento de si próprio. Assim, não raro, na obra de Ibsen surgem personagens que ajudam outras a conhecerem a si mesmas. É o que acontece, por exemplo, em O Pato Selvagem, obra que iremos nos deter um pouco mais a partir de agora.

 

2. Observações sobre O Pato Selvagem

         Os primeiros planos para O Pato Selvagem tiveram início no inverno de 1882. No entanto, a primeira versão da peça não foi iniciada até 20 de abril de 1884, data que corresponde ao momento em que Ibsen começou a trabalhar no primeiro ato da primeira versão da peça. De acordo com informações advindas de anotações do próprio Ibsen, ele passou oito dias trabalhando neste ato. O segundo ato foi iniciado a 2 de maio, mas Ibsen parou no meio. Nessa altura, o primeiro e segundo atos foram reescritos, indo o processo até 24 de maio. O terceiro e quarto atos foram escritos no período entre 25 de maio e 8 de junho, ao passo que o quinto foi executado entre 9 e 13 de junho. No dia seguinte, Ibsen escreveu ao seu editor dinamarquês, Frederik Hegel, dizendo que tinha acabado de concluir a versão da nova peça. Informava ainda que a peça era dotada de 5 atos. Além dessa e de outras informações, dizia que acreditava que a versão impressa teria 200 páginas ou mais e que tão logo a versão final estaria pronta. Nas palavras do próprio dramaturgo:

 

“Assim, agora resta fazer a versão final, sendo que irei começá-la amanhã. Como de costume, no entanto, não será uma mera cópia da anterior, mas sim uma reescrita do diálogo. Logo, esta tarefa irá levar algum tempo. Tenho como garantido, porém, que desde que nada de imprevisto ocorra, o manuscrito finalizado deva estar nas suas mãos em meados de setembro. Esta peça não trata de modo algum de questões de índole política, social ou pública. Diz totalmente respeito à vida em família. Irá, sem dúvida, provocar alguma discussão, mas não ofenderá ninguém”. (MERETE, 1995)

No dia 2 de setembro de 1884, Ibsen enviou a versão final do manuscrito a Frederik, escrevendo:

 

“Junto com esta carta envio o manuscrito da minha nova peça, O Pato Selvagem, que me ocupou durante os passados quatro meses, pelo que devo sentir um pouco a sua falta depois de me ter de separar dela. Apesar das suas muitas fraquezas, as personagens desta peça tornaram-se queridas para mim depois de lidar com elas diariamente ao longo de tanto tempo. No entanto espero que encontrem também bons e amáveis amigos entre o grande público de leitores e que também entre a comunidade de actores no seu todo, sem excepção, proporcione tarefas recompensadoras”. (MERETE, 1995)

         Assim, a peça O Pato Selvagem foi lançada no dia 11 de novembro de 1884 pela editora Gyldendalske Boghandels Forlag (F. Hegel & Søn), em Copenhague e Cristiânia, numa edição de oito mil exemplares, e tanto os críticos como os leitores ficaram um pouco confusos com o seu surgimento. O próprio Ibsen mostra em uma carta que já estava preparado para esse tipo de recepção quando diz que a nova peça tem um lugar muito próprio dentro de sua produção dramática. Segundo ele, o método empregado em O Pato Selvagem difere em diversos níveis do método anterior empregado em O Inimigo do Povo e outras peças. Por isso, “os críticos encontrarão estas diferenças, espero. De qualquer modo, terão muito sobre que discutir e muito para interpretar” (MERETE, 1995).

          Para muitos críticos, O Pato Selvagem introduz uma fase simbólica na escrita de Ibsen. O fato é que, introduzindo ou não uma nova fase, a peça é dotada de símbolos que acabaram causando uma certa confusão aos leitores. No entanto, mesmo assim, a peça vendeu muito bem, e logo foi impressa uma segunda edição de dois mil exemplares. A primeira apresentação foi no dia 9 de janeiro de 1888, em Bergen, e foi um sucesso que teve muita relação com o diretor, Gunnar Heiberg. A partir de seu sucesso na Noruega, não demorou muito e a peça de Ibsen começou a ser representada em outros países.

         Ibsen disse que muitas coisas teriam os críticos para discutir e interpretar a respeito de O Pato Selvagem.  Para que comecemos a pensar um pouco na matéria que dá origem às discussões e interpretações várias a respeito da obra, seria interessante nos determos um pouco em seu enredo.

         Em O Pato Selvagem, temos um fotógrafo, Hjalmar Ekdal, que vive com sua mulher Gina e sua filha Edvig em um local onde, além da casa em si, há um estúdio e alguns quartos para serem alugados. Nessa casa há também um grande sótão, onde eles criam galinhas, coelhos e um velho pato selvagem, que um dia levou um tiro nas asas e, para não ser sacrificado, foi dado de presente à família. Vive também na casa o pai de Hjalmar, o Velho Ekdal: um militar aposentado que foi preso anos antes por ter prejudicado, segundo afirmaram algumas pessoas, os negócios de Werle, um poderoso industrial. No começo da peça, o filho desse industrial, Gregers Werle, vem para casa, depois de muito tempo fora, para estar presente no jantar especial oferecido pelo pai. Lá, Gregers descobre que Gina, antiga empregada de seu pai, se casou com seu amigo Hjalmar e que seu pai ajudou os dois financeiramente. Gregers, a partir de algumas sábias deduções, percebe o que estava por trás de toda ajuda de seu pai e, a partir daquele momento, considera-se com o dever de ajudar Hjalmar a ver a Verdade por trás de seu casamento, para que, então, o amigo pudesse viver um relacionamento realmente verdadeiro. Depois de uma séria conversa com Gregers, Hjalmar confronta Gina e pergunta se ele é realmente o pai de Hedvig. Gina, confusa, responde que não sabe de fato, e a partir desse instante Hjalmar passa a negar Hedvig, que sofre muito, pois ama profundamente “seu pai”.  Gregers, ao perceber a tristeza da menina, diz a Hedvig que ela pode ter o amor do pai de volta se ela sacrificar o pato selvagem que vive no sótão ao qual ela está tão profundamente atada. Mas Hedvig se mata ao invés de matar o pato, e a peça termina com a morte da jovem e as reflexões dos personagens.

         Quando nos deparamos com uma obra como O Pato Selvagem, não podemos nos furtar de observar o quanto a caracterização dos personagens é profunda. O fato é que, muito bem delineada, essa caracterização nos permite visualizar a obra em sua totalidade de forma muito rica. Cada personagem da obra, com seu modo particular de ver o mundo, com seu modo singular de ser, nos permite entender a obra a partir de um prisma diferente, e é a partir das ações de cada um, a partir das falas, das caracterizações do ambiente e tantos outros recursos que temos revelações acerca dessas personagens. Atendo-nos ao comportamento, à forma como elas agem, muito nos é informado, sobretudo quando pensamos nelas comparando-as umas as outras. Vemos, não raro, que uma dada personagem funciona como uma espécie de antítese da outra, sem deixar de apresentar em comum a mesma complexidade, a mesma interioridade fragmentada e muitas vezes, para não dizer sempre, problemática. Para que pensemos melhor a respeito desse ponto, vejamos como nos é mostrado, ainda que rapidamente, as personagens Gregers, Hjalmar, Hedvig e Reeling.

         Gregers, como percebemos logo no início da peça, é o filho do industrial Werle. Durante muito tempo ele se retirou para ficar consigo mesmo e trabalhar morando longe do pai, com o qual não possui nenhuma afinidade. Quando volta para casa, encontra-se com o velho amigo Hjalmar, na festa que o pai está dando e, conversando com ele, consegue perceber uma série de coisas a partir de deduções bastante inteligentes. É depois dessa conversa com o amigo, sobretudo depois da conversa com o pai, que ele irá ter um objetivo na vida, como ele mesmo diz, e tentará, como um cão caçador, mergulhar e salvar do fundo do mar o pato que naufragou. O pato ao qual se refere Gregers é Hjalmar, e, nesse sentido, fica claro que a intenção do filho do industrial é propiciar ao seu amigo a saída das profundezas para que ele tenha, enfim, “a hora mais pura de sua vida”, ainda que, por outro lado, esta também possa ser a mais amarga. O fato é que Gregers acredita piamente que só assim Hjalmar poderá viver verdadeiramente. À medida que nos defrontamos com a peça não é difícil perceber o pato selvagem, o grande símbolo da peça, como uma alusão à personagem de Hjalmar. Homem fraco e suscetível, fotógrafo lamentável e acomodado que simplesmente aceita as coisas como são sem questioná-las, Hjalmar possui os olhos fechados. E é por estar tão mergulhado em seu mundo insignificante e longe da superfície e da percepção da realidade que Gregers, seu amigo de infância, acaba por manifestar essa vontade de acordá-lo para mostrar-lhe a Verdade.

         A forma como Hjalmar vê o mundo e como ele lida com a realidade o faz parecer uma criança ingênua que não consegue perceber de forma clara o mundo ao seu redor, algo que contrasta com a personagem mais jovem da peça que tem muita perspicácia no processo de apreensão do mundo ao seu redor, apesar de sua pouca idade.

         Uma das características mais fortes que percebemos em Hedvig é o sentimento que ela tem por aquele que ela considera seu pai, uma mistura de admiração, amor e carinho, amalgamados com um profundo desejo de fazê-lo e vê-lo feliz. Esse sentimento que ela nutre pelo pai é também demonstrado, ainda que em menor grau, pelo pato selvagem que vive em sua casa. O interessante de observar, nesse sentido, é que somente nesses momentos de manifestação de afeto por esses dois personagens é que a vemos, de fato, trazer à tona caracteres realmente infantis e ingênuos, pois a postura da garota ao longo da peça é semelhante a uma pessoa adulta, inteligente e perspicaz.  Por isso, é notável na peça o fato de Hedvig, apesar de seu grave problema de vista (o mesmo que acomete o senhor Werle, pai de Gregers), conseguir enxergar o que se passa e compreender o mundo ao seu redor de forma mais aguda que os demais que habitam a sua casa. Por essa razão também é ela que entende o discurso metafórico de Gregers quando este aluga um dos quartos e vem morar em sua casa. Por fim, ela é a única que consegue conversar e entender todos da casa e por tudo aquilo que manifesta, por todas as ações e reações, Hedvig acaba por contrastar enormemente com Hjalmar.

         Um dos pontos altos da peça ocorre quando Gregers conversa com Hjalmar e este, depois de sair das profundezas nas quais se comprazia, depois de perceber a verdade por detrás de seu relacionamento com Gina, se afasta daquela que ele considerava como filha. Hedvig, desorientada sem o amor do pai, se sente abandonada e não entende o porquê do afastamento daquele que ela mais ama. Gregers, percebendo toda a situação e pensando no fim positivo, ou seja, pensando na vida verdadeira que aquela família poderia ter a partir daquele momento, sugere à menina que ela sacrifique o pato selvagem em prova de seu amor pelo pai. É interessante observar que nesse ponto da peça, após essas ações, vemos se delinear de forma mais clara uma outra personagem que nos ajuda a compreender melhor a natureza de Gregers, por contraste.

         No terceiro ato da peça, temos um interessante diálogo entre Reeling, o médico que acredita que todo ser humano necessita de uma Mentira Ideal para viver, e Gregers, aquele que crê que nós precisamos da Verdade para viver de forma plena.  Através do discurso de Reeling, percebemos que Hjalmar nunca possuiu um caráter verdadeiro, por isso a necessidade de implantar na vida dele a mentira ideal através de um tratamento. O fato é que, para Relling, todo homem é um doente e por isso todos necessitam de tratamento. Dessa forma, a Mentira Ideal, que seria o contrário da Verdade de Gregers, visa manter o homem feliz, funcionando como um anestésico em relação às dores e sofrimentos da vida. Nesse ponto reside a necessidade da mentira. Pois, para que a vida continue, a mentira precisa existir. Nas palavras do médico: “se você tirar a mentira vital de um homem comum, tira-lhe ao mesmo tempo a felicidade”. Assim, percebemos através das idéias do médico que se você retira a mentira da vida de um homem, você o condena ao sofrimento.  É a partir de idéias como essas, de ações por sua vez demasiadamente significativas que a natureza de cada um desses sujeitos vai se delineando. É perceptível que todos eles trazem em si a sua própria verdade, mesmo que esta seja uma mentira aos olhos de outras pessoas. É de fácil percepção na obra uma busca pelo autoconhecimento e pela auto-realização, para se chegar a determinados objetivos. E tudo isso não é mais do que uma conseqüência da existência de vários problemas que precisam ser urgentemente sanados. Algo que fica da observação desses personagens é o fato de cada um deles possuírem suas cisões e estarem em busca de uma cura para seus problemas, encarando-os de fato ou se escondendo dos mesmos.

         Gregers precisou ficar um tempo longe para pensar e refletir acerca de sua vida. Depois desse tempo longe, conseguiu perceber que a relação com seu pai era impossível por haver diferenças significativas entre ambos. Nesse processo, percebemos que muitos de seus problemas estão relacionados com sua mãe também, que era a única pessoa com a qual ele tinha um bom relacionamento; ou seja, ela acabava por funcionar, ainda que não tenhamos a participação efetiva dela na peça, como elemento contrastante em relação ao seu pai. Depois de todos os acontecimentos que Gregers passou, depois de todas as reflexões, ele acabou encontrando um meio para se sentir melhor, passando a acreditar que a solução para uma vida mais significativa é encarar e trazer à tona a Verdade. Já Relling, por sua vez, o oposto de Gregers, acredita que é necessário viver com a Mentira Ideal, pois é ela que faculta ao homem viver realmente. Assim, exemplificando esses dois tipos de existência através de uma única personagem, temos Hjalmar, que vive uma existência sob a cortina da Mentira Ideal até que Gregers o desperta com a Verdade que ele teimava em não ver. Todavia, depois de sair das profundezas, ele acaba novamente por se afundar, mergulhando na mentira para viver “feliz”, esquecendo-se de tudo o que se passou, inclusive esquecendo o fim de sua filha. Gregers acredita ser uma possível redenção o intuito da garota e talvez seja mesmo a redenção de si própria e da sua família o fim último da garota quando esta dispara uma bala contra o peito. No entanto, acerca do final da peça realmente não podemos afirmar nada de forma categórica.

         O fato é que o pato selvagem permanece, enquanto que aquela que tanto o estimava perece. Ambos os patos continuam a viver em virtude da atitude da garota. Quanto ao pato selvagem real, sabemos que este de certa forma continuará a viver mediocremente, sem poder alçar vôos mais altos, por conta dos danos irreversíveis em suas asas. Por sua vez, se nos apoderarmos das idéias de Relling como uma espécie de verdade que clarifica o futuro de Hjalmar perceberemos que depois de todos os acontecimentos, depois de sair das profundezas e facear a verdade, ele irá voltar a viver como sempre viveu, pois esse é o comportamento natural do homem comum. Assim, Hjalmar abalado por conta da morte inesperada de Hedvig continuará a levar a mesma vida que teve durante toda a sua existência. Poderia ser um grande homem, um grande pato selvagem, mas não é mais do que um homem fraco, ferido e medíocre.

         Podemos dizer de fato que o sujeito na obra de Ibsen está em busca da verdade; mas não uma verdade qualquer. O sujeito ali busca a verdade preconizada por Kierkegaard, a sua própria Verdade, não absoluta, mas individual; uma verdade que traz sentido para si mesmo. Observador arguto do século que estava diante de seus olhos, Ibsen trouxe aos seus escritos preocupações que nasciam com as descobertas da ciência, aliadas às dúvidas e às angústias que essas mesmas descobertas suscitavam, mostrando-nos tudo isso através de suas personagens que trazem consigo a marca da modernidade. Cada uma das personagens de Ibsen, nessa peça em especial, nos deixa de frente com esse sujeito fragmentado e cindido que busca se conhecer ou acaba se conhecendo através de pressões exteriores. Hjalmar não é mais do que o homem cindido, multifacetado, que oscila entre a verdade e a mentira para viver sua existência. Gregers ilustra o sujeito que busca a reflexão, o isolamento, a introspecção para encontrar um significado para sua vida. Reeling, por sua vez, é, assim como Gregers, um observador, mas, ao contrário do primeiro, buscou na multidão as idéias que direcionam a sua vida. Por isso, quando observaas pessoas, ele percebe que estas precisam realmente de uma mentira para se manter, ele percebe que o homem precisa realmente de um elemento que o faça viver e acredita que esse elemento não é a verdade. Já Hedvig é aquela que oscila entre a lucidez de um ser maduro e a ingenuidade de uma criança. No limiar da juventude, ela mostra como podemos abrigar em nós a maturidade e a inocência no que tange o enfrentamento do mundo.

         Ibsen, ao ter sido o primeiro a penetrar de uma nova forma no mundo interior das personagens e desmascarar as engrenagens dos valores da sociedade burguesa, conseguiu nos mostrar um espelho no qual vemos refletidas toda a singularidade e complexidade do sujeito moderno, sujeito esse que reproduz nós mesmos de forma, não raro, bruta e realista. De fato, na composição de cada um desses personagens, encontramos os elementos que estão presentes em nós mesmos, elementos que nos configuram – e os configuram – como seres plurais, multifacetados, divididos, cindidos por desejos que não conseguimos realizar ou que realizamos e que não nos satisfazem, enfim, desejos que nos tornam seres eternamente desejantes de algo mais, seres nunca plenamente satisfeitos.

 

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